Tiago Lêdo
ciclo programático 03 / Dildotauro de Lide
Tiago Aires Lêdo, nasceu no Porto em 1992. É artista de som, novos media e performer e é parte do colectivo multimédia - COLECTIVO 「大音量コンピューター」e do Teatro Universitário do Porto.
Interessado em militância sonora, música generativa e interacção, participou em projectos de educação, música, cinema, televisão, videojogos, e instalação. Publicou música sob os pseudónimos: rizumirai, 空のリズム, ghostrhythm e SOM FLORES.
Sob este último nome, lança em 2021 o EP álbum ☷T'AI☰ e o single MOÇO, trabalhos mais voltados para a temática política através da vida pessoal e para a temáica pessoal através da vida política.
É Mestre (MSc) em Multimédia com especialização em Música Interactiva e Design de Som pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e Licenciado em Cinema e Audiovisuais pela Escola Superior Artística do Porto (ESAP).Completou o Curso de Iniciação à Interpretação do Teatro Universitário do Porto (TUP) e é formador de tecnologia/programação musical no Laboratório de Experimentação Musical (L.E.M.) e colaborador do programa educativo da Orquestra Jazz de Matosinhos
Os dias me viraram do avesso e desviraram,
as horas me trançavam para me desarrumar.
Quanto mais me busquei nos espelhos secretos,
mais me perdi de mim.
Lya Luft, em O Tempo é um Rio que Corre
O terceiro ciclo do programa de residências artísticas No Entulho foi organizado em parceria com a Pedreira, aqui o artista transmasculino Tiago Aires Lêdo tomou como ponto inicial em sua pesquisa uma carta escrita e não enviada por si e Tiago Colaço em 2018 ao Partido Comunista Português a solicitar a desfiliação deles por conta da “posição [não-ética] assumida pelo PCP em relação ao projeto de lei elaborado pelo partido PAN [Pessoas-Animais-Natureza] que pretendia a abolição da tauromaquia”. Tal escrito libelo de Lêdo e Colaço marca, assim, o comprometimento decolonial de cada um ao sugerir que as populações afeiçoadas que “ficarem sem esta atividade não estão impedidas de desenvolver qualquer outra que não inclua a agressão desnecessária a um animal” e ainda pontua que “a bancada do Partido Comunista Português teve a oportunidade única de estar do lado dos trabalhadores e dos animais, mas escolheu um dos dois.” Isto posto, no decorrer da carta de Lêdo e Colaço, a masculinidade dos “camaradas e amigos” aflora, por suas decisões contadas a nós, como uma cartografia política e de prática de governo, visto que essas categorias políticas que organizam o interior da nossa vida pública são categorias masculinas. Logo, a razão do Estado está configurada a partir de uma gramática masculina e corporificada como representação das masculinidades, e, por isso, esse imaginário corporal masculino está associado normalmente a formas de poder e ação, sobretudo codificadas pela linguagem bélica, das armas e da violência.
Ao acompanhar Lêdo em sua residência artística, soube que o “touro [manso] objectificado e vitimizado [em estado de agressividade]” descrito em sua carta servia como um espelhamento de si diante do mundo e essa visão veio a transmutar durante o processo de pesquisa num dos mitemas constituintes do mito do Labirinto, o Minotauro, para, em seguida, Lêdo verificar as diferentes formas existentes de se organizar a experiência no mundo do que se convencionou a chamar de homem e, por fim, para explorar um processo de produção ficcional de si, de seu gênero e de seu corpo masculino.
Como transfeminista, julgo ser importante enfatizar o entendimento de que a categoria CIScolonial homem se consolidou como um processo histórico, ou melhor, como um processo de fabulação histórica, sendo que isso significa dizer que não há nada de essencial em ser homem, dado que não há nada do ponto de vista da biologia que constitui a prática social da masculinidade como tampouco da muito falada testosterona. Ademais, é importante mencionar que as ciências são atividades culturais, porque a natureza é criação da cultura, cujas pistas de sua criação foram apagadas e, por isso, que parece que a natureza sempre está ali. À vista disso, a testosterona compõe um tipo de corpo em que se convencionou a ser um corpo masculino, mas que pode ser constituinte de outros tipos de corpos em outras sociedades, ou seja, esses corpos podem não ser a mesma coisa que o corpo masculino que entendemos, bem como pode não ocupar o mesmo lugar social no que pensamos como corpo masculino. Por exemplo, na obra “Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas” (1935), fruto de trabalho de campo realizado em Papua-Nova Guiné, a antropóloga Margaret Mead mostra outras formas de organizar e de se inscrever a corporalidade no mundo, que não seja mediada por uma constituição CIScolonial de sexo biológico que responda a um ordenamento de gênero que é binário, e não só binário, como também CISheterossexual, branco, estático, monogâmico e cristão, uma vez que ele vai pensar justamente pênis e vagina como opostos complementares.
Por conseguinte, ao adentrar o espaço de uma indústria – local esse também associado ao repertório ocidental de imagens da masculinidade –, o artista Tiago Aires Lêdo, em sua presente narrativa minotáurica trágico-performativa experimental, coloca em xeque esse mundo com seu próprio corpo, gerando assim um desejo horizontalizado de falar por si mesmo ao apresentar sua releitura trans do Minotauro. Deste modo, a despeito de ter aprendido com Ariadne-Hilda a trilhar o seu próprio caminho ao desemaranhar os fios que tanto lhe perturbam, como se nota em sua ação, Minotauro-Lêdo decompõe todo o seu processo e o apresenta de forma aberta semelhante a escrita de um diário duracional, onde não só narra o direito de fazer com seu próprio corpo o que deseja, mas também convida as pessoas a entrarem em seu Labirinto para se perderem e se encontrarem nele.
Texto por artista e curadora travesti Hilda de Paulo.
Ouvir conversa entre Tiago e Hilda na pedreira aqui.
parceria com Pedreira
recursos: ferro, material elétrónico, pintura, vídeo
formato: residência ciclo programático 03
fotografia: Bruno Lança
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